Entender o BBB-17 é fundamental para entender a modernidade segundo Heidegger

O teatro não era teatro, era vida. Festas religiosas não representavam deuses e suas histórias, eram vividas como apresentação e manifestação dos deuses. Quando os gregos deixaram essa prática e criaram o teatro de palco, a apresentação deu espaço para a representação. Desde esse tempo, o sonho da representação é voltar a ser apresentação, mas estando isso bem distante do horizonte de possibilidades, o esforço nesse sentido produz um monstrengo: forma-se a promiscuidade entre a representação institucionalizada como representação, a do palco, e a nossa vida cotidiana, que se pensa como sendo não representação. O BBB-17 deu o exemplo máximo dessa situação.

O rádio foi o primeiro meio de comunicação que realmente criou a confusão entre vida e ficção, entre rua-casa e palco. A TV ampliou seus poderes. A Internet revolucionou esse caminho, o de definitiva fusão dessas instâncias. O trajeto foi este: a TV levou a ideia do cinema às últimas consequências, ou seja, transformou o instrumento chamado tela como sinônimo da situação ficcional par excellence. O que está na tela é ficcional, mas muitas vezes, real no sentido de representação que aspira à fidedignidade. Aprendemos isso. A TV vem se reordenando para participar dessa fusão criada por ela e potencializada e aperfeiçoada ao extremo pela Internet.

O primeiro passo da TV foi a criação do “reality show”. O importante era jogar para a tela pessoas comuns vivendo suas vidas, tirando o público do folhetim convencional, do livro ou da novela televisiva, para colocá-lo no folhetim agora vivido por personagens definidos como não-atores. O segundo passo logo veio quando a vida comum, a chamada realidade, passou a entrar na tela já no funcionamento do “reality”, no mundo todo, por meio da Internet. Isso não só pelo voto, mas pela interação entre pessoas exteriores ao jogo, inclusive alheias ao jogo. Assim, o reality que poderia já não ser sentido como real, por um público cansado do mesmo, se tornaria ainda mais imiscuído na ficção que prometia ser real. isso reporia as forças do programa. Foi o que ocorreu no BB-17, e em grande estilo, para sorte de Tiago Leifert e sua equipe. Tiago não só melhorou muito o BBB, mas também sempre tem sorte, e esta não lhe faltou nessa estréia. Tudo ficou como o diabo gosta. O que ocorreu?

A então insuportável Emily iria criar a explosão na Casa, mais cedo ou mais tarde. Todos estavam pelas tampas com ela, dado que ela é a fácil frágil. Uma cobra. E isso, a explosão, ocorreu em prévias, em vários momentos, mas o decisivo foi com Marcos, como estava previsto. A tal da agressão de Marcos a ela deu chance para que uma delegada aparecesse no saguão de entrada da Globo. Todos na TV vibraram. A realidade batia às portas, para entrar novamente, tornando o reality, que já poderia estar soando ficção, em algo novamente real. A representação já estava se parecendo representação, mas com a delegada, ela ganhou ares novamente de vida, de apresentação. Os deuses parecem terem podido sair do palco e voltar às ruas. Esse é o objetivo da TV integrada na Internet numa grande rede de entretenimento em que a vida cotidiana é o show e a promiscuidade entre ficção e não-ficção é, enfim, o que vamos chamar de realidade. A ideia é que tudo vire uma grande “ficção real” –  permitam-me aqui o termo paradoxal. É o caminho inexorável de um mundo em que não é possível mais ter os deuses nas ruas, em apresentação, pois tudo de fato é palco, tudo é representação.

O êxito da Globo nesse episódio foi incrível. A sorte também. E a participação de Tiago no grupo de escolha dos perfis para integrar a Casa foi decisivo. O jovem sabe o que faz num meio de Entretenimento, parece ter nascido para isso, bem diferente de seu antecessor. O BBB estava prestes a deixar de existir, mas o sucesso deste número 17 vai colocá-lo no ar por mais uma década. E a fórmula de gerar a confusão entre ficção do reality show e o que chamamos de realidade irá progredir para situações cada vez mais inusitadas. A evolução da mídia eletrônica e a integração entre máquina e corpo humano irá proporcionar situações psicológicas que irão arrebatar o gosto popular. Aguardem, vocês verão. O folhetim nascido no século XIX irá dar seus passos decisivos!

Para a visão filosófica, o que vale destacar é que essa situação é aquela já anunciada por Heidegger, quando ele notou que o mundo da modernidade é “imagem de mundo”. Não vivemos apresentações, mas sim representações. Pois se tudo é crivado pelo homem, como é nos tempos modernos a partir do Humanismo, então o palco é o homem e o espectador é o homem. O homem, como aquele que traz tudo pela mão e pelos olhos, representa. Então,  num mundo assim, tendo o homem como centro e como sujeito (hypokeimenon, subjectum, fundamento), base de tudo, só pode ser representação, imagem. Ora, o reality é a promessa, claramente falsa, é óbvio, de terminar com a representação. Se a representação está associada à ideia de palco de imagens e tela, pode-se trazer a vida comum com pessoas que não são atores para a tela, como a internet faz hoje (e assim educa os jovens), com cada vídeo que postamos, e então criar a ficção de que a ficção é a realidade. Deu certo. E com a intervenção da delegada caçando e cassando o Marcos, a coisa toda fechou com chave de  ouro. Se alguém duvidava que tudo era realmente real, ela deu a palavra final: o poder externo está aqui e vai entrar na tela – declarou ela, para alegria da Globo. Entrou. A fusão tela-mundo se fez novamente. O mundo da imagem que é já produto do tempo da imagem de mundo encontrou seu nicho apropriado para se fazer passar por realidade, tornando-se realidade. A Rede Globo deve muito à delegada que resolveu participar do programa por dever do ofício. Sem saber e não podendo fazer de outra forma, a delegada teve de virar personagem do reality. Ora, personagem do reality não é personagem, não exemplo de verdade. Afinal, trata-se de reality!

A fusão completa entre imagem projetada e vida fora das telas perde sentido. Tempo de tela e tempo dito real não se separam. O mundo como representação se realiza materialmente. A modernidade, segundo Heidegger, se consubstancia. Entender o BBB, principalmente o BBB-17, é adentrar o campo mais complexo da filosofia na atualidade. O BBB é para todos mas, como a filosofia, não é para qualquer um.

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